O RAPTO DO SANTO

VERA LEITE

Tiburcio era um legítimo “cabra da peste”. Sertanejo que não temia cabo de enxada. Honesto, cheio de fé, nascido na caatinga. De vaqueiro aboiador, trabalhador de empreita, carroceiro, doceiro, de tudo já tinha feito. Matuto sabido, “cabra respeitador”.

De porte elegante, pele queimada pelo sol esbraseado e rasgada pelos espinhos das juremas, acompanhava as novenas que se realizavam pela vizinhança, noite após noite.

Naquela noite enluarada, enquanto as mulheres iam à frente, pela estrada, entoando as ave-marias, Tiburcio deixou-se ficar para trás, pensando na seca que torturava “todo ser vivente”. A paisagem doía-lhe o coração. O rio estava seco, os poços feitos no seu leito não minavam mais água, na cacimba só tinha lama...

Súbito, acendeu-lhe no peito uma esperança. Era um homem de fé ou não era? Era.

Chegando à casa de seu Feliciano, o oratório já estava aberto. Tinha santo para todo gosto. Velas acesas e flores campestres em vasos improvisados.

Com o novenário na mão, Tiburcio, contudo, não se concentrava na ladainha com aquela idéia martelando o “juízo”.

- Num posso fazer isso, num posso fazer isso – falava consigo.

Enfim, o amém e aquela conversa ligeira na calçada. No alvoroço das despedidas, um descuido, e, Tiburcio meteu a mão no oratório, pegou uma imagem e enfiou debaixo do sovaco por dentro da camisa. Despediu-se e botou o pé na estrada.

O coração batia forte, as pernas tremiam, aquilo era uma blasfêmia, pensava. Tiburcio estava contrariado, não sabia de onde viera tanta coragem para cometer tal ato. Olhava para o céu, estava límpido, estrelado. Mas, não se arrependia, “o que estava feito, estava feito, agora era só esperar”.

Chegou a casa, acendeu o candeeiro, pegou o santo que já se encontrava suado e olhou-o para identificá-lo, pois, na pressa não deu tempo de escolher.

-São Benedito!? Gritou.

O ideal seria São Pedro, pois, ele é quem manda chuva, segundo a crença popular.

-O que tá feito, tá feito, gora é só esperar - disse resignado.

Fez sua oração costumeira ao pé da cama, com os cotovelos apoiados no colchão de palha e deitou-se. Mal adormeceu quando se acordou com o estrondo do trovão. Não acreditou. Tirou a trave da janela, abriu-a e pôde encher o peito com o cheiro de terra molhada. Os pingos da chuva molhavam o seu rosto e misturavam-se com suas lágrimas. Olhou para o céu cortado pelos raios e agradeceu. Não dormiu mais, estava muito feliz, queria que todos soubessem do seu feitio, do milagre do santo...

O fato correu toda a vizinhança.

Elogiado por uns, criticado por outros.

- Isso num tá direito, com santo não se mexe, dizia a beata Dolorinda.

Passado os comentários e terninada a invernia convidou toda vizinhança para uma novena de gratidão a São Benedito e pela ocasião devolveria o santo raptado.

Preparou-lhe um altar com muitas flores e velas. Desculpou-se, agradeceu a compreensão, beijou o santo e colocou-o no altar.

A ladainha já ia começar, quando Tiburcio gritou:

- Esbarra aí! Esbarra aí!

Foi depressa, trouxe a imagem de São Pedro e colocou-a ao lado de São Benedito, olhou desconfiado para D. Orismídia e disse:

- A Senhora me adescurpe também... foi mode num causá ciúme...

Ao final, desculpou-se mais uma vez e devolveu as imagens aos seus respectivos donos. Após os estampidos dos fogos, todos se foram. Sozinho Tiburcio pensou em tudo que aconteceu, sentiu um arrepio na espinha e determinou:

- Nunca mais mexo com santo.

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